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A parentalidade socioafetiva e os seus reflexos no direito das sucessões
Por Giuliano Sthefano Dohms Preti - 26/11/2021
Com o avanço da cultural da sociedade brasileira nas últimas décadas, diversos conceitos e dogmas sociais foram adaptados para a atualidade, pelo que o próprio conceito de família já recebeu novas interpretações que visam incluir as mais diversas modalidades atuais de núcleo familiar.
O conceito de núcleo familiar era estabelecido pelo Código Civil de 1916, que determinava como família apenas aquela contraída através do casamento, tanto que usava a nomenclatura “família legítima” (redação do artigo 229 do Código revogado), sendo exclusivamente considerados os filhos originados deste matrimônio.
Visando incluir os diversos núcleos familiares existentes na realidade brasileira, a Constituição da República de 1988 trouxe visibilidade às concepções de família anteriormente segregadas pelo Código Civil de 1916, pelo que passou a considerar, por exemplo, a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes como entidade familiar (redação do artigo 226, §4º, da CF), bem como trouxe uma situação de igualdade de direitos para os filhos havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção (redação do artigo 227, §6º, da CF).
Com o advento do Código Civil de 2002, novamente a concepção de núcleo familiar foi ampliada, pelo que houve a adição da figura da parentalidade afetiva (redação do artigo 1.593 do CC), há muito conhecida pela sociedade como os filhos de criação, onde existe um sentimento de se considerar como pai e de se sentir como filho na relação familiar, em que a sociedade também passou a considerar como “adoção à brasileira”.
Muito embora a “adoção à brasileira” seja extremamente comum, a sua prática é tratada como crime pelo direito brasileiro (redação do artigo 242 do Código Penal), pelo que o procedimento ideal a ser seguido é a formalização da adoção através do Estatuto da Criança e do Adolescente.
Com a socioafetividade parental, surgiu o entendimento de que a existência de afeto e de convivência duradoura dentro de uma relação entre pai ou mãe e filho, bem como a disposição de carinho entre as partes, o companheirismo, a proteção e a solidariedade próprios de uma família, mostram-se suficientes para configurar uma relação parental (REVISTA IBDFAM, 2014, p.16), sendo equiparada ao laço biológico para todos os fins, inclusive sucessórios.
Acompanhando o desenvolvimento da sociedade e o surgimento de novas modalidades de famílias, o Conselho da Justiça Federal, através do enunciado nº 256 da III Jornada de Direito Civil (2004), deixou claro que a parentalidade socioafetiva, fundada na posse do estado de filho, constitui modalidade de parentesco civil.
Para a doutrina, a posse do estado de filho necessita de três requisitos para sua configuração: a) tractus – o tratamento da pessoa pelos familiares como se filho fosse; b) nomem – a pessoa utiliza do sobrenome da família; e c) reputatio – o reconhecimento, pela sociedade, da pessoa como se filho fosse.
No entanto, com o aparecimento de diversas novas composições de núcleos familiares, surgiram diversos questionamentos no mundo jurídico, um dos mais polêmicos trata da possibilidade (ou não) de reconhecimento da parentalidade afetiva após a morte e os impactos no procedimento sucessório.
Em sede de julgamento do Recurso Especial nº 1.500.999/RJ, o Superior Tribunal de Justiça pacificou o entendimento de ser possível o reconhecimento da parentalidade socioafetiva post mortem baseada na posse do estado de filho, bastando estar presente a vontade inequívoca do falecido em adotar (art. 42, §6º do Estatuto da Criança e do Adolescente), bem como o tratamento como se filho fosse e o conhecimento público dessa condição.
O Instituto Brasileiro de Direito de Família, através do enunciado nº 6, afirma que o reconhecimento jurídico da filiação socioafetiva (os “filhos de criação”) decorre todos os direitos e deveres inerentes à autoridade parental, pelo que o filho socioafetivo tem direito a participar dos procedimentos sucessórios, muito embora não haja previsão legal expressa para tanto.
Após o reconhecimento da parentalidade socioafetiva (que pode ser realizada inclusive após o falecimento), o filho poderá ingressar na partilha de bens (caso já tenha sido iniciada) do pai/mãe socioafetivo falecido, em razão de ser assegurado ao “filho de criação” todos os direitos sucessórios, como novamente definiu o Superior Tribunal de Justiça no julgamento do Recurso Especial nº 1.618.230/RS.
Portanto, acompanhando o desenvolvimento da sociedade e em respeito as novas modalidades de família que surgiram com o passar dos anos, a parentalidade socioafetiva passou a ser reconhecida como possibilidade de parentesco civil, pelo que os filhos socioafetivos (“filhos de criação”) passam a ter todos os direitos sucessórios decorrentes do seu reconhecimento, inclusive após o falecimento do pai socioafetivo ou da mãe socioafetiva.
