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Da relação de trabalho e as plataformas digitais
As plataformas digitais estão cada vez mais inseridas no cotidiano dos brasileiros, com maior destaque nos segmentos de transporte e comércio de alimentos, cujos serviços têm sido cada vez mais requisitados por aplicativos de smartphone, principalmente pela facilidade de sua utilização, bem como pela economia obtida em comparação aos meios tradicionais.
Nesse cenário, um tema que vem sendo muito discutido é o direito trabalhista (ou restrição deste) dos trabalhadores que se ativam em favor das empresas atuantes em plataformas digitais, pois estes não possuem registro de emprego (carteira de trabalho assinada), atuam como autônomos – por demanda, e muitas vezes de forma sazonal e para outras empresas do seguimento – e, por isso, os direitos fundamentais aplicados ao trabalhador comum não se lhes aplicam, em especial aqueles previstos no artigo 7º, da Constituição Federal, que garante remuneração mínima, férias, décimo-terceiro salário, limitação da jornada de trabalho, remuneração superior para trabalho noturno ou em regime de horas extras, adicional de insalubridade e periculosidade, dentre outros mais.
Juridicamente, o que distingue o trabalhador-empregado do trabalhador-autônomo é o fato de que, conforme dispõe o artigo 3º da CLT, aquele presta serviços ao seu contratante (empregador) de forma pessoal (não podendo se fazer substituir por outra pessoa), onerosa (percebimento de salário), não eventual (continuada) e subordinada (recebendo ordens), ao contrário deste que possui plena liberdade na execução dos seus serviços, tendo que observar, apenas, o objeto do contrato (ou seja, a tarefa que lhe foi contratada).
Pois bem. Nas relações de trabalho entre as empresas atuantes em plataformas digitais e os trabalhadores que lhes prestam serviços, temos em regra geral o seguinte quadro: a pessoa física se cadastra no aplicativo-plataforma digital e, sendo aceita, estará apta a receber ordens de serviço, seja de transporte de passageiros, seja de entrega de encomendas, ou outro congênere, com o que passa a trabalhar em favor dessas empresas em horário livre, bastando, apenas, estar online no aplicativo-plataforma, percebendo as quantias previamente por elas estipuladas, desde que aceite o pedido, já que possui a liberalidade de aceitação ou recusa.
Com efeito, embora o trabalhador venha a aderir às regras gerais de funcionamento das plataformas digitais, não se estipula salário mínimo garantido, nem, por outro lado, restrição de tempo destinado ao serviço – tanto no que tange às horas destinadas ao dia de trabalho, quanto aos dias da semana –, sendo-lhe facultado estabelecer livremente a sua forma e rotina de trabalho, sendo o famoso “patrão de si mesmo”.
Diante disso, vários questionamentos pairam acerca dessa relação, pois, se, em tese, o trabalho despendido por meio das plataformas digitas é realizado de forma meramente autônoma, resta também evidente (por consequência lógica) que a prestação de serviços se dá com grande liberdade, a qual decorre principalmente da quase ausência de regramento no desenvolvimento da atividade laborativa, o que na interpretação de muitos poderia resultar na precarização das condições de trabalho.
Por conseguinte, algumas dessas relações de trabalho já têm sido levadas à análise do Judiciário Trabalhista, a fim de se analisar com maior minúcia a realidade fática. Em alguns casos, foi identificada nuance de relação de emprego, determinando-se, à empresa atuante na plataforma digital, a anotação da carteira de trabalho, ou seja, o reconhecimento de vínculo regido pela legislação trabalhista – com a condenação ao pagamento das correlatas verbas trabalhistas – daquele que se ativou em seu favor. Em outros casos, reconheceu-se a mera prestação de serviços autônoma, sem qualquer vínculo de emprego.
Estamos diante, portanto, de uma nova modalidade de trabalho que vem se difundindo em grande velocidade e amplitude, tendente a aumentar as oportunidades de trabalho e a tornar mais dinâmicas e flexíveis as relações jurídicas entre empresas e trabalhadores, principalmente pela facilidade do acesso e a liberdade na prestação dos serviços, mas, em contrapartida, com incertezas sobre a observância das garantias fundamentais do trabalho, o que fomenta o debate se essa forma de trabalho é válida e, ainda, se válida for, se está totalmente alheia ao regime de trabalho CLT e a suas garantias constitucionais.
Certamente, a discussão jurídica acerca dessas relações terá um longo caminho até firmar um entendimento pacífico, principalmente porque o que vemos é o nítido embate jurídico e ideológico entre: liberdade de trabalho x proteção do trabalhador.
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