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Pacote Anticrime e o juiz das garantias

Em 24 de dezembro de 2019 foi sancionada a lei nº 13.964/2019 (conhecida como “Pacote Anticrime”) que, segundo seu preâmbulo, “aperfeiçoa a legislação penal e processual penal” e, dentre as alterações legislativas daí decorrentes, instituiu a polêmica figura do “juiz das garantias”.


Como se depreende da tramitação do respectivo projeto de lei (nº 6.341/2019 do Senado; nº 10.372/2018 da Câmara dos Deputados), a intenção do legislador seria a de obstar que o juiz atuante na fase investigatória seja o mesmo que julgará a ação penal, sob o argumento de que “a ideia básica é garantir ao juiz do processo (agora chamado de juiz da instrução e julgamento) isenção e ampla liberdade crítica em relação ao material colhido na fase de investigação”. 


Trata-se de inovação que já vinha sendo discutida em outro projeto de reforma do Código de Processo Penal e foi inserida na redação original do projeto de lei nº 10.372/2018 quando ainda tramitava na Câmara dos Deputados. Com isso, foram inseridos novos dispositivos legais no Código de Processo Penal, dentre os quais o art. 3º-B, segundo o qual “o juiz das garantias é responsável pelo controle da legalidade da investigação criminal e pela salvaguarda dos direitos individuais cuja franquia tenha sido reservada à autorização prévia do Poder Judiciário (...)” e o art. 3º-D, segundo o qual “o juiz que, na fase de investigação, praticar qualquer ato incluído nas competências dos arts. 4º e 5º deste Código ficará impedido de funcionar no processo”. 


Na prática, passa a ser fracionada a atuação do Poder Judiciário na persecução penal: a) num primeiro momento, atua apenas o “juiz das garantias”, voltado ao “controle da legalidade” da fase investigatória; b) uma vez instaurada a ação penal, atua o “juiz da instrução e julgamento” responsável por apreciar “todas as questões pendentes” e julgar a ação.


Muitos defendem essa alteração legislativa, por entenderem ser positivo e necessário separar a figura do juiz que decide questões ligadas à investigação com a daquele que vai julgar o processo, sob o argumento de que isso, por si, acarretaria maior imparcialidade no julgamento. Segundo declaração recente do presidente do STF, Min. Dias Toffoli, “a legislação é positiva para a sociedade e é preciso ter consciência disso. O juiz das garantias não é a única mudança da lei e não estabelece um juiz que vai proteger o criminoso, mas que será rígido para acompanhar a investigação”. 


Embora não se questione a louvável preocupação do legislador com a “salvaguarda dos direitos individuais” e em “garantir ao juiz do processo (agora chamado de juiz da instrução e julgamento) isenção e ampla liberdade crítica”, cabe refletir sobre a validade e a eficácia da alteração legislativa.


De um lado, questiona-se a inconstitucionalidade formal da nova lei, seja porque, em tese, trata de matérias de competência privativa dos Tribunais (CF, art. 96, I, “a” e “d”) ou reservada a lei de iniciativa dos Tribunais (CF, art. 96, II, “d), seja porque dispõe sobre a organização do Poder Judiciário, matéria reservada a lei complementar (CF, art. 93). Por outro lado, discute-se que a instituição do “juiz das garantias” é inconstitucional porque fere o princípio do juiz natural (CF, art. 5º, LIII), enfraquece a busca da verdade real e afeta a efetividade da atividade jurisdicional, na medida em que, nesse novo cenário, o magistrado prolator da sentença não terá o mesmo conhecimento do caso (de todos os fatos, indícios e provas) que teria se houvesse atuado desde a fase investigatória.


Esses, aliás, são alguns dos fundamentos da ação direta de inconstitucionalidade proposta pela Associação dos Magistrados Brasileiros – AMB e pela Associação dos Juízes Federais do Brasil – AJUFE no Supremo Tribunal Federal (ADI nº 6.298).

Conquanto já haja situações semelhantes à atuação do “juiz das garantias” – em sete estados: Amazonas, Goiás, Maranhão, Minas Gerais, Pará, Piauí e São Paulo, em que já juízes dedicados unicamente ao acompanhamento da fase investigatória – o fato é que a implantação desse sistema depende de uma pluralidade de fatores (estudos técnicos, previsão orçamentária etc.) no âmbito interno dos Tribunais, a quem, diga-se, a Constituição Federal atribuiu a iniciativa de legislar sobre a organização judiciária. E a premissa motivadora da inovação legislativa do “Pacote Anticrime” – de que seria parcial a sentença criminal proferida pelo mesmo juiz que atuou na fase investigatória – decorre de raciocínio tortuoso sem confirmação prática. Não se vislumbra possível concluir, sequer logicamente, que a atuação do juiz na apreciação de questões preliminares (como prisões preventivas) necessariamente afetaria sua cognição e sua imparcialidade.

Enfim, sem nenhum demérito à intenção do legislador, cabe ponderar o risco concreto de a atuação do “juiz das garantias” vir a impactar negativamente na efetividade da atividade jurisdicional, seja pelo risco concreto de ocasionar maior burocratização e lentidão no processo penal, com possível aumento de casos de extinção da punibilidade pela prescrição, seja por distanciar o “juiz da instrução e julgamento” de todas as minudências da investigação do caso, certamente de curial importância para o julgamento final.


 


 

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