Lei de abuso de autoridade e reflexos nas decisões judiciais
top of page

Artigos e notícias

Lei de abuso de autoridade e reflexos nas decisões judiciais

Não se vê unanimidade nos posicionamentos sobre a Lei nº 13.869/19, a chamada lei de abuso de autoridade, que “define os crimes de abuso de autoridade, cometidos por agente público, servidor ou não, que, no exercício de suas funções ou a pretexto de exercê-las, abuse do poder que lhe tenha sido atribuído”.


E, no presente texto, não se ousa polemizar os inflamados debates sobre o acerto (ou não) do legislador. Apenas se discorre, aqui, sobre os efeitos práticos que a referida norma já vem produzindo no âmbito do Poder Judiciário, ainda que não tenha sequer entrado em vigor (o que somente ocorrerá em janeiro de 2020).


À margem do objetivo de criminalizar atos efetivamente arbitrários e de punir quem abuse da autoridade no âmbito do poder público, a norma vem sendo interpretada como ferramenta de intimidação de agentes públicos, em especial, dos membros do Poder Judiciário. Talvez por conta da atual conjuntura em que parte da população desconfia de todas as instituições genericamente consideradas. 


Nesse contexto, alguns magistrados vêm externando receio de que a lei cause impactos que lhes afetem a independência e a autonomia que devem prevalecer no exercício da atividade judicante. E a manifestação desse sentimento de insegurança é até compreensível. Vejam-se os casos recentemente divulgados na imprensa, de juízes que passaram a ser alvo de partes e advogados que se autoconcederam a liberdade de proferir ataques pessoais à figura do julgador, em vez de questionar a decisão judicial pelos meios legais cabíveis (como seria legalmente aceitável).


E o que é mais preocupante: apesar de ainda não estar em vigor, a norma já vem interferindo (indiretamente) na prolação de decisões judiciais, notadamente de magistrados desconfortáveis com o risco de responder processo criminal relacionado a ato praticado no exercício de sua função judicante. 


Basta conferir os recentes casos de processos criminais em que juízes decidiram pelo relaxamento de prisões cautelares, por força de suposta restrição imposta pelo art. 9º da lei (que tipifica como crime deixar de “relaxar a prisão manifestamente ilegal”). Ou, ainda, de processos cíveis em que juízes negaram ordens de bloqueio de ativos financeiros (pelo sistema Bacenjud) em virtude do art. 36 da lei (que tipifica como crime “decretar, em processo judicial, a indisponibilidade de ativos financeiros em quantia que extrapole exacerbadamente o valor estimado para a satisfação da dívida da parte e, ante a demonstração, pela parte, da excessividade da medida, deixar de corrigi-la”). 


É bem verdade que, nas referidas situações, em tese só se admitiria a caracterização de crime se restasse configurado o elemento subjetivo, requisito geral que norteia toda a lei: a prática do ato com “a finalidade específica de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal” (art. 1º, §1º). 


No entanto, o fato inegável é que se instaurou um ambiente nebuloso de insegurança, provocado pelas diferentes interpretações da lei de abuso de autoridade. E isso lamentavelmente vem desde logo produzindo efeitos nefastos à efetividade da atuação do Poder Judiciário, na medida em que a norma vem sendo interpretada como limitadora da atuação dos magistrados na composição dos conflitos.


A Associação dos Magistrados Brasileiros inclusive ajuizou ação direta de inconstitucionalidade (ADI nº 6.236) no Supremo Tribunal Federal “visando a inconstitucionalidade de todos os artigos que atingem a independência do Poder Judiciário, na recente lei aprovada pelo Congresso Nacional, conhecida como lei de abuso de autoridade” (segundo nota oficial da entidade).


O art. 40 da LOMAN (Lei Orgânica da Magistratura) assegura a dignidade e a independência do magistrado no exercício da jurisdição. E, diferentemente do que alguém desatentamente poderia concluir, essa garantia não visa a privilegiar a pessoa do juiz, mas, sim, a salvaguardar a devida aplicação do direito de forma imparcial (já que, ao exercer a jurisdição, o juiz não há de se subordinar a ninguém, senão à sua própria consciência) e, bem assim, os direitos fundamentais, o pacto federativo e a democracia. 


Vale lembrar que, no exercício da magistratura, impõe-se ao julgador o dever de agir “com independência, serenidade e exatidão” (art. 35, I, da LOMAN), qualidades que, bem ou mal, vêm sendo comprometidas com as incertezas que atualmente pairam sobre o devido alcance da lei de abuso de autoridade, como se esta houvesse de regrar a atuação dos magistrados na atuação jurisdicional em si. 


Não se discute que independência funcional não autoriza nem chancela arbitrariedades de agentes públicos, quaisquer que sejam. Mas, independentemente do acerto em se buscar a criminalização do abuso, cabe ponderar o risco concreto de a aplicação irrefletida da lei vir a interferir negativamente no conteúdo dos atos judiciais e, assim, prejudicar a atuação independente do Poder Judiciário e a própria sociedade. Como já dizia EDUARDO COUTURE, “da dignidade do juiz, depende a dignidade do direito. O direito valerá, em um país e um momento histórico determinados, o que valham os juízes como homens. O dia em que os juízes tiverem medo, nenhum cidadão poderá dormir tranquilo”. 
 


 

bottom of page